sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Travestchy e orientação sexual não é bagunça!!

Já aviso de antemão: o texto é longo e polêmico. Vai ter gente me jurando de morte depois de ler isso, mas creio que vale a pena!

Através do site Superpride, fiquei sabendo da existência de "novas orientações sexuais", como os G0ys e os Highsexuais. Quando surgiu isso tudo aí, fiquei me questionando: ok que o que a pessoa sente é muito mais determinante do que a opinião externa para se definir a própria orientação sexual. Mas eu também questiono que, para efeitos práticos, vivemos numa sociedade que reprime orientações sexuais que não sejam a heterossexualidade.

Assim, como inferir se a orientação sexual declarada condiz com a realidade interna da pessoa ou se aquilo não é apenas manifestação de uma repressão que foi internalizada? Essa diferenciação pode ser extremamente importante, por exemplo, para que um psicólogo consiga ajudar um paciente a resolver conflitos que estejam ligados à orientação sexual da pessoa (i.e. autossabotagens cuja raiz são a homofobia internalizada). Logo, nem todo questionamento a respeito de uma sexualidade é deslegitimação/silenciamento (desde que, obviamente, o questionamento tenha o compromisso com o máximo de respeito possível). Entendo que os conceitos de orientação sexual são muito limitados, principalmente por serem associados, na maioria das vezes, a um sistema binário de gênero. Mas algumas orientações sexuais que surgem na mídia parecem tão vazias de coerência que me fazem questionar a existência real delas.

Isso me leva a raiz: como definimos uma orientação sexual? Por ser um comportamento humano, eu, como um biólogo, acredito que deve ser considerado três fatores, principalmente, quando se trata da expressão de uma orientação sexual: os biológicos, os culturais e os psicológicos. Já adianto que minha visão não é nem de longe determinista, mas próxima de um discurso biológico pós moderno que reconhece a interação de diversos fatores entre si.

Por fatores biológicos, quero dizer a existência (ou não) de uma necessidade fisiológica de satisfação sexual. Temos diversos tipos de necessidades fisiológicas como, por exemplo, de ingerir substâncias químicas das quais nosso corpo necessita (e, dependendo do alvo do desejo, damos nomes diferentes a estas necessidades - sede, para quando o corpo clama por água e fome para quando o corpo deseja outros tipos de nutrientes). É importante perceber que esses são nomes de referência para nossas necessidades fisiológicas, pois a fome pode se manifestar por uma vontade de comer alguns tipos específicos de comida ("não gostaria de fazer um lanche: estou com fome de comida de casa, tipo arroz com feijão e coisas semelhantes"...), de maneira que existem várias "fomes", várias "sedes", vários "sonos"... Se alguém tenta "enganar o próprio corpo" enchendo o estômago de outras substâncias químicas (tipo as pessoas que bebem água pra gerar a sensação de saciedade para a fome), ela não satisfaz a necessidade fisiológica que originou o desejo. Este, certamente, voltará com mais intensidade num futuro. Fisiologicamente, podemos dizer que a necessidade de satisfação do desejo sexual funciona de forma análoga ao que eu relatei acima a respeito das substâncias químicas de que necessitamos para nos manter vivos. Para não tornar isso aqui mais extenso, não vou entrar no mérito de que cada corpo tem uma fisiologia única (ou seja, funcionamos bioquimicamente diferentes uns dos outros, apesar de um padrão comum à nossa espécie - o que explica reações diferentes em cada indivíduo para um mesmo remédio, por exemplo), e de que pode haver uma influência genética (ou epigenética) na sexualidade humana, além de outros fatores biológicos que geram ainda hoje pesquisas sobre o tema. Apenas citarei isso e, num futuro, pode ser que eu resolva fazer um post pra destrinchar melhor o que eu penso sobre isso.

Contudo, existe os fatores culturais que modelam a forma como satisfazemos esse desejo (é importante lembrar que inclui-se na cultura a educação formal, a educação informal e a educação não-formal, dentre outros fatores). Um exemplo de como a cultura interfere nas maneiras que temos para satisfazer nossa necessidade fisiológica de nutrientes é que um tipo de alimento muito popular numa determinada cultura pode ser considerado repulsivo ou mesmo não ser percebido como alimento em outras culturas (no sudeste asiático, baratas, aranhas, escorpiões, grilos, formigas, bichos da seda e outros artrópodes são vendidos como comida em barracas de espetinhos, coisa inimaginável na cultura brasileira). Podemos usar esse exemplo para compreender metaforicamente, como a cultura tem influência sobre a orientação sexual. A cultura nos cria padrões do que é ou do que não é considerado atraente e isso delimita como podem ser expressas as sexualidades humanas.

Somado à cultura e aos fatores biológicos e culturais, existe também os fatores psicológicos envolvidos na formação da sexualidade humana. A trajetória pessoal de cada indivíduo que pode reforçar ou suprimir determinadas tendências comportamentais, na medida que cada experiência interage com as imagens mentais e com os modelos mentais do indivíduo. Quero deixar claro que, quando digo isso, não estou pensando num sentido estritamente ligado ao conceito do Behaviorismo, mas algo mais próximo da Psicologia Cognitiva. Considerando que imagens mentais e modelos mentais são formulados a partir da vivência dos indivíduos, a trajetória pessoal pode contribuir para moldar tendências comportamentais, incluindo aí a forma como o indivíduo lida com o próprio desejo sexual.

Antes que me acusem de abrir precedentes para métodos que pretendam interferir na sexualidade das pessoas, vale salientar que a construção da sexualidade é um processo que inclui muitas variáveis e que a maioria delas é muito difícil de controlar, de forma que podemos considerar impossível querer intervir no processo de formação da sexualidade humana e conseguir o êxito em conduzi-la a um caminho previamente desejado por quem pretende interferir, sem que se produzam "sequelas" ou "resultados não-funcionais". Aliás, pode-se também considerar que as interferências intencionais na sexualidade humana não são capazes de alterar o que seria seu "destino natural".

Dessa forma, existe a possibilidade de o indivíduo ter uma tendência biológica, psicológica e cultural que o deixaria susceptível a vivenciar determinada orientação sexual, mas por alguns fatores de sua trajetória pessoal de vida, ele escolhe não viver (ou seja, o que chamamos de alguém "enrustido"). Neste caso, teríamos uma "orientação sexual potencial" (que foi reprimida por um fator psicológico e/ou cultural) e uma "orientação sexual declarada" (que é aquela que o indivíduo diz sobre si), sendo que das duas emergem de um conflito psicológico no qual o indivíduo não consegue, em muitas das vezes, se enxergar em sua totalidade. Na minha modesta opinião, G0ys e os Highsexuais são exemplos deste último caso. Parece haver um "malabarismo de argumentação" para justificar um distanciamento de uma orientação homossexual ou bissexual, na medida em que se observa inconsistências argumentativas.

Creio que G0ys e os Highsexuais são exemplos de inconsistência na definição de o que é uma orientação sexual, pois, para início de conversa, só abarcam em suas definições um dos gêneros. Uma pessoa homossexual, heterossexual, bissexual, demissexual ou assexual pode pertencer a qualquer gênero. Mas só pode ser g0y, por exemplo, quem for "homem" com "jeito de homem", que não curta penetração anal e que não se identifique como gay, nem tenha nada que remeta ao feminino. Assim, o termo g0y seria mais uma demonstração de machismo e homofobia que propriamente uma orientação sexual. Importante lembrar também que a questão de não haver sexo com penetração anal não define uma orientação sexual, pois está mais ligada à preferência de determinadas práticas sexuais - e homossexuais, bissexuais, heterossexuais e demissexuais podem ou não gostar de determinadas práticas (por exemplo, alguns pessoas gostam de penetração, enquanto existe os que dispensam qualquer tipo de penetração - e isso vale para qualquer uma das orientações sexuais "clássicas"). Para os Highsexuais, além da crítica de que apenas homens se declaram "highsexuais", vale pensar se não é o caso no qual muita homofobia internalizada pode reprimir os desejos pessoais e que, com o uso da droga, a mente da pessoa consegue se livrar mais facilmente da autorrepressão, em semelhança do efeito já conhecido do álcool. Além disso, se dlecarar Highsexual expressa todo um apagamento da bissexualidade, como sintoma de uma bifobia internalizada (pois, em nossa sociedade monossexista, a maioria dos heteros condenaria os bissexuais por terem relações com pessoas do mesmo gênero e a maioria dos homossexuais condenaria os bissexuais por terem relações com pessoas de outro gênero ou por julgá-los como enrustidos, indecisos, etc.). Em todo o momento em que se fez piada sobre o termo "Highsexuais", ninguém cogitou a possibilidade da descoberta de uma possível bissexualidade, dada a influência de um pensamento monossexista de que não existem pessoas que possam se sentir atraídas por mais de um gênero.

Com esta postagem, assim como no texto em que faço uma revisão teórica das limitações das categorias que temos para as orientações sexuais humanas, não quero invalidar a experiência alheia ou mesmo dar a palavra final sobre um assunto tão polêmico. Gostaria apenas de sugerir que, como temos uma necessidade humana de criar nomes para compreender as coisas e que esses nomes são referências genéricas, que criemos todos os nomes necessários (os tais rótulos). Mas que mantenhamos a cautela para não criar tantos nomes que, ao invés de facilitar a nossa compreensão do mundo, torne a nossa comunicação extremamente confusa. E, para encontrar o equilíbrio necessário, sugiro o questionamento respeitoso e a abertura também respeitosa para receber as respostas à crítica feita.

10 comentários:

  1. De tudo isto fica sua magnífica conclusão:

    "mantenhamos a cautela para não criar tantos nomes que, ao invés de facilitar a nossa compreensão do mundo, torne a nossa comunicação extremamente confusa. E, para encontrar o equilíbrio necessário, sugiro o questionamento respeitoso e a abertura também respeitosa para receber as respostas à crítica feita."

    Pura sabedoria ...

    Beijão

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  2. Olha, complicado hein! É todo um novo mundo para ser entendido pelas pessoas... gostei de forma como você explicou as coisas e me ajudou a entender um bocado de coisas que as vezes vejo surgirem nas discussões...

    Agora troço complicado é desconstruir essas visões que a gente formou ao longo do tempo...

    Grande abraço!

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    1. Complicado mesmo! Mas não dá pra desistir... hehehe

      Grande abraço!

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  3. A própria bissexualidade surge da necessidade em negar os rótulos, em seguir por um caminho diferente que não usual. Lembro que quando descobri e aceitei meu desejo por homens, embora até a sétima série tivesse um histórico de paixões arrebatadoras por garotas, meu pensamento era me assumir gay aos meus pais por questões práticas, políticas. No momento era aquele desejo que prevalecia e também queria evitar alguma esperança deles em relação a eu namorar e casar com alguma mulher no futuro.

    Depois de um tempo quis entender bissexuais - quem nunca? - e me deparei com pessoas igualmente sem respostas. A maioria me respondeu, numa pergunta que fiz num fórum, que sonhavam em formar uma família tradicional, sendo que contraditoriamente estavam à procura de um parceiro do mesmo sexo para namorar. Acredito que nossa sexualidade seja fluida e diversa, e que não haveria necessidade para rótulos se não existisse tanto preconceito e deslegitimação em relação a homossexualidade, principalmente. Este seria um mundo ideal, sem dúvidas.

    No entanto, não vivemos ainda neste mundo e, atualmente, é preciso rotular e se posicionar para que direitos básicos sejam conquistados, pra mostrar que existimos, que temos força, independentemente de termos certeza absoluta se podemos escolher por quem nos apaixonamos(oi?). A bissexualidade não vingou como forma de desconstruir a polarização (rs bj, marina) entre a homossexualidade e a heterossexualidade. E creio que estas outras também não funcionará. Quando não são teorias excessivamente academicistas, viram piadas na web. Só obverso.

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    1. Então... Tanta coisa pra te responder, que eu teria que fazer um texto enorme, quase um outro post em anexo...

      Mas assim, resumindo seu raciocínio, teríamos: "bissexuais não podem se declarar bissexuais neste mundo que não é o ideal e devem se declarar homossexuais para proteger homossexuais de preconceito e deslegitimação". É isso?

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  4. Você tocou no ponto que pensei quando li a noticia sobre os highsexuais, como uma possível orientação condicionada pela homofobia e pela bifobia internalizada. Outro ponto que você tocou, que pouquíssimas vezes vi algum menção: É classificar homossexualidade como sinônimo de sexo anal, sendo essa última uma condição para a primeira existir.
    Essa é uma das minhas "frustrações" com o mundo gay. A rigidez comportamental, que a maioria dos gays trata essa questão resumindo o sexo a ativo*passivo, os que fogem a essa "norma" são tidos como pessoas que não "fazem sexo", para ser sexo tem que haver penetração. Como alguém pode dizer para o outro o que ele faz é ou não é sexo?

    Fiquei curioso sobre uma coisa. Em que pontos ou quais fatores culturais influem na "formação" da homossexualidade e na bissexualidade, já que vivemos sob um padrão cultural heteronormativo?

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    1. Então... Sua última pergunta é complicada de responder. Quem sou eu pra DEFINIR o que pesquisadores do mundo todo ainda dão como incerto, né? Entendo que vivemos numa cultura heteronormativa e monossexista e, exatamente por isso, A EXPRESSÃO da homossexualidade e bissexualidade são reprimidas. Contudo, o que em nossa cultura poderia contribuir para A GÊNESE da homossexualidade, da bissexualidade e de todas as sexualidades divergentes da norma heterossexual é difícil de definir afinal, dentre outros motivos, a cultura não é uma coisa única e homogênea, menos ainda estável ao longo do tempo.

      Somos inseridos numa determinada cultura através da família, da escola, de instituições religiosas, dos amigos, dos meios de comunicação, da nossa vizinhança, das expressões artísticas, da nossa realidade socioeconômica, do sentimento de pertencimento (ou a ausência deste sentimento) em relação a determinados grupos (torcidas esportivas, pessoas que tem em comum o gosto por determinado estilo musical, praticantes de algum hobbie ou esporte, etc.)... São tantas vozes, muitas vezes conflitantes e que atingem a cada pessoa de uma maneira diferente, que acredito ser quase impossível dizer o que, na cultura, poderia influir na formação de qualquer sexualidade.

      Quando digo no texto que existe uma influência cultural, eis aí uma presunção que é confirmada por dados estatísticos (mas, como tudo nas Ciências, não é uma verdade absoluta). A cultura, em minha concepção, representa a pressão que o meio ambiente faz sobre a base genética (ou epigenética) de uma sexualidade. Façamos uma analogia: a maioria das características observáveis (fenótipos) são o resultado de base genética + influência ambiental. Isso não vale para poucas características que são exclusivamente genética (por exemplo, tipo sanguíneo), mas vale para o esmagadora maioria. Duas pessoas podem ter a mesma base genética para cor de pele, mas ter fenótipos diferentes pelo fato de uma ficar constantemente exposta ao sol e a outra raramente ficar exposta ao sol. As pesquisas com gêmeos monozigóticos apontam que existe influência genética (ou epigenética) na gênese da sexualidade humana, pois não existe uma correlação exclusivamente genética (que seria em 100% dos casos os gêmeos monozigóticos apresentarem a mesma sexualidade). Logo, é razoável presumir que existe uma GRANDE possibilidade de alguma pressão ambiental (que neste caso seria a cultura) influir na gênese das sexualidades humanas (que são expressas através de comportamentos e de nossa identificação).

      Esclareci ou confundi ainda mais? rs

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