segunda-feira, 25 de maio de 2015

A maldição da binaridade (ou Algoz de nós mesmos)

Conversando ontem com um amigo, ele afirmou que uma pessoa que sofre um tipo de opressão não pode ser considerada opressora (tipo: mulheres não podem ser consideradas machistas, negros não podem ser considerados racistas, etc.). Seu argumento afirmava que há uma diferença entre ser homofóbico e reproduzir ideias homofóbicas, pq uma pessoa homossexual não tem poder na sociedade para ser opressor. E só oprime quem se beneficia disto. Afirmar o contrário abriria brecha para a culpabilização da vítima. Discordei veementemente! Para mim, tal raciocínio é falso, simplista e perigoso... Mas, para explicar meu ponto de vista, preciso fazer considerações anteriores.

Vivemos numa sociedade que tem um pensamento binário, a priori, para tudo. Para nos expressar, utilizamos majoritariamente como referência polarizações de dois extremos. Muito/pouco, seco/molhado, alto/baixo, nada/tudo, positivo/negativo, grande/pequeno, dia/noite, rico/pobre/, vazio/cheio, claro/escuro, diabo/deus, culpado/vítima, bem/mal, herói/vilão, mulher/homem, gay/hetero, PT/PSDB...

Mas, êpa!!!! O mundo é feito de extremos mesmo? Não existe intermediários? Pra a nossa mente, às vezes, parece que não. Contudo deveríamos nos questionar sobre esse tipo de pensamento, especialmente quando falamos das últimas 6 polarizações...

As pessoas do mundo real não são genuínas expressões desses contrastes. Somos cheios de contradições, geralmente distantes de sermos definidos completamente num polo dos nossos conceitos de mundo. Não somos iguais às novelas, nas quais o vilão não tem nada de herói e as pessoas podem ser facilmente categorizadas em boas ou más. No mundo em que vivemos, ninguém é 100% bonzinho e nem 100% malvadão.

E, quando a gente fala da relação opressor/oprimido, a gente cai na maldição do binarismo e não consegue enxergar a nuances que temos entre os extremos. Ser machista, racista, transfóbico, bifóbico, homofóbico, lesbofóbico, xenofóbico e ademais formas de se oprimir uma classe não tem nada a ver com "ser 100% mal". Cada uma dessas opressões existe de forma sistêmica em nossa sociedade e não se trata apenas de ter uma ideia errada ou "fazer uma coisa feia aos olhos dos outros", mas de reduzir todas as pessoas a meras engrenagens que têm função de manter o sistema em que vivemos funcionando. Essas opressões são estruturais, corroboradas pelo Estado e suas consequências são historicamente perpetuadas de forma cumulativa. O objetivo desses sistemas de opressão é manter relações de poder e, assim, subjugar seus "alvos". Daí, a nossa tendência é buscar um culpado pra detonar e nos livrar do sistema de opressão. Mas - surpresa! - não é tão fácil assim!

Quando reduzimos a questão a um grupo de "vilões" e outros de "vítimas", sofremos da maldição da binaridade e fazemos uma análise incompleta. Temos a tendência de esquecer que, quando prejudicamos alguém, nem sempre nossa motivação é se beneficiar. Por exemplo: meus pais me expulsaram de casa quando eu lhes contei que sou bissexual. Isso até hoje traz problemas para mim e para eles. Simplesmente destruiu nossa relação familiar, nossa convivência e até hoje nós lutamos para reconstruir o que foi devastado. Vou dizer que meu pai e minha mãe (heteros) não cometeram bifobia comigo só pq eles não foram beneficiados? Infelizmente, nós todos somos vítimas e engrenagens num sistema bifóbico. Nada mais que isso. Mas a ação que eles cometeram só pode receber um nome: bifobia! Naquele momento, a bifobia se manifestava por meio dos meus pais, mesmo que eles nem tivessem consciência disso. Não fizeram por uma vilania, por uma maldade. Se a gente reduz bifobia apenas a atos genuinamente vilanescos, como combater que filhos sejam expulsos de casa por opressões do sistema (mulheres por serem "mães solteiras" - denotando machismo -, pessoas por serem LGBTs, etc.)?

Além disso, uma pessoa que sofre uma opressão pode sim oprimir outras pessoas. Fora as opressões óbvias (um homem bissexual branco pode ser racista e machista), existem aquelas que contrariam quem defende que não há opressões dentro da própria classe. Um homem gay pode repetir ideias homofóbicas e, assim, contribuir para a perpetuação desse sistema quando, por exemplo, chama outro gay de "bichinha" como forma de ofendê-lo numa roda de amigos. Por que a mesma ação com a mesma intenção vinda da boca de um hetero seria homofobia e de um gay não? Vamos convir que não é só porque a pessoa sofre preconceitos e opressões que ela magicamente fica isenta de reproduzir e ser um agente ativo neste sistema que vivemos. Já dizia o educador, pedagogista e filósofo Paulo Freire: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor". Mas Simone de Beauvoir deixa ainda mais claro o que eu quero expressar quando ela diz que "o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". Para clarear mais sobre esse assunto, recomendo a leitura do (honesto, franco e bem escrito) texto "O Elefante Branco na Sala: Relacionamento Abusivo entre Mulheres" do Bi-sides (blog que amo demais!!!!).

Fazendo essa análise, percebemos que TODOS SOMOS CULPADOS (em maior ou em menor grau) pela manutenção das opressões, pois o sistema nos reduziu a engrenagens, bombardeando desde o nosso nascimento suas ideologias, minando a autoestima de seus alvos e fazendo-os aceitar um processo de "coisificação". Mas esse não é um caso de "já que todos somos culpados, dá no mesmo que ninguém seja culpado e não é preciso fazer nada". Temos a obrigação moral de destruir esses sistemas de opressões simplesmente pq eles são injustos e cruéis. Bilhões de vidas são massacradas por essas opressões e não podemos simplesmente não fazer nada. É preciso reconstruir nossa forma de conviver em sociedade, passando pela mudança do nosso interior e do exterior também.

Neste ponto do texto, já prevejo comentários dizendo: "mas essa sua fala abre brecha para culpabilização da vítima, sim!". Não abre não. Sabe por quê? Por que existe uma coisa chamada INTENÇÃO e esta faz toda diferença pra determinar de quem é a culpa. Uma mulher quando sai na rua com uma roupa que algumas pessoas consideram como "curta demais" não está com a intenção de ser estuprada: ela o faz apenas pq se sente bem com aquela roupa. Um homem gay quando é morto por um garoto de programa num motel não foi pro motel com a intenção de ser assassinado: ele apenas queria viver a própria sexualidade da única forma em que, em alguns casos, ele consegue vivenciá-la (normalmente, a sociedade não lhe deu outra opção de vivenciar a própria sexualidade). O agressor, nesses casos, tem a nítida intenção em prejudicar. Não é evidente a diferença de intenções entre vítima e culpado? Isso para questões legais é fundamental (além da clareza do legislador em tipificar o crime - que, para evitar injustiças cometidas pela subjetividade de quem julga, devem ser definidas do modo mais objetivo e concreto possível).

Prevejo, também, alguém comentando: "Ah, Cara Comum, mas vc mesmo disse que no mundo real temos mais nuances e fica complicado polarizar vítima/culpado...". Sim, eu disse isso! E é por isso que acredito que toda análise deve ser feita levando em consideração o máximo de fatores possíveis e que não podemos ser simplistas. Meus pais não tem culpa de terem sido bifóbicos comigo: eles apenas não tinham consciência da bifobia que cometiam. Eles, tanto quanto eu, têm que se dedicar a desconstruir isso dentro da cabeça deles e no convívio familiar (e social).

Seria ótimo haver formas simples de resolver problemas complexos, mas não há. A solução para o simplismo da "culpabilização da vítima x" não pode ser o simplismo do "grupo x é sempre vítima de y". Precisamos ir além disso e, mesmo não tendo culpa (ou todos a tendo), nos livrar dessa herança maldita. O baralho já está com as cartas marcadas e não dá pra simplesmente começar um novo jogo: precisamos trocar o baralho e começar tudo de novo...

8 comentários:

  1. Seu texto foi perfeito, completo e tocou em pontos muito importantes.

    Eu penso que uma forma de reduzir esse problema viria com convivência, políticas de inclusão social, educação, entre varias outras, mas talvez a educação seja mais uma das mais importantes, já que tem muitos tabus seculares na sociedade que precisam ser derrubados.

    Mas é muito difícil quebrar essa herança binária infiltrada na sociedade, parece até mentira mas a educação atual é direcionada a sermos binários, as religiões sabem fazer isso com louvor, a mídia então é profissional, e ai já era, vira uma bola de neve.

    Caberia às pessoas que não tem a oportunidade de serem esclarecidas, de por exemplo ler textos como o seu, terem a mente aberta, fazendo analises de si mesmas e porque vivem assim, e perceberem quando estão errando ao assumir uma posição extrema.

    Eu tenho feito essa auto analise, faço isso pq ja devo ter errado mto e as vzs nem percebi e ainda erro, mas tento evitar repeti-los ou cometer novos erros, pois pra mim os arrependimentos doem mto e as vzs fica muito dificil serem curados e justificados.

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    1. Fabrício concordo 200% com seu comentário! Precisamos reeducr essa sociedade, urgentemente!

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  2. belissimo texto... belissimo! eu tenho pensado muito nesta questão da binaridade... tenho lido muito sobre isto e vc apresentou otimos argumentos e reflexões... obrigado! abs

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    1. Eu é que te agradeço! Seu blog é tão inspirador... rs

      Abraços!

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  3. Nem sei por onde começar, de tão abrangente e lindamente como você desenvolveu o tema. Ficando restrito apenas ao conceito da dualidade, ou binaridade, como você disse, penso que essa forma de pensar é bem o reflexo, não apenas das religiões (maniqueístas por excelência), mas da própria cultura ocidental. Esses opostos “puros” (bem/mal, claro/escuro, etc.) não têm um correspondente real no mundo. Do pouco que conheço, talvez os orientais vejam isso com mais clareza. A realidade é sempre expressa, manifesta, por gradações. Assim, entre o claro e o escuro “puros” (e, portanto, idealizados, não reais) é que se manifestam todas as possíveis gradações da luz, correspondentes ao mundo real das coisas. Será que dá pra entender o que quero dizer? (rs)

    Sobre a sua questão final (precisamos trocar o baralho)... se for como eu penso, acho bem difícil! Quer dizer, se for algo cultural, portanto entranhado há séculos em nosso modo de pensar, acredito que a mudança também será uma questão de séculos. Talvez algum dia, no futuro, quando nos dermos conta o baralho já terá sido trocado. Por um processo lento, não por uma revolução abrupta.

    Abraços

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    1. Bem, claro que deu pra entender! Tudo o que vc disse é bem próximo do que eu penso...

      Abraços!

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  4. Nossa... adorei teu texto! Penso como você... participo de um grupo e já vi "tretas" imensas por conta dessa questão de o oprimido nunca vai poder ser opressor e quase sempre vejo isso como desculpas para as pessoas pintarem e bordarem...

    Como diria Marina Silva, essa dualidade prejudica o Brasil... brincadeiras a parte, eu penso que todos temos algum grau de culpa, óbvio que alguns são mais prejudicados ou são vitimas em maior grau dessa opressão. Mas vira e mexe vejo oprimidos sendo piores que seus opressores, sob a "desculpa" de que não possuem força para oprimir.

    Bacana mesmo!

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