Já aviso de antemão: o texto é longo e polêmico. Vai ter gente me jurando de morte depois de ler isso, mas creio que vale a pena!
Através do site
Superpride, fiquei sabendo da existência de "novas orientações sexuais", como os
G0ys e os
Highsexuais. Quando surgiu isso tudo aí, fiquei me questionando: ok que o que a pessoa sente é muito mais determinante do que a opinião externa para se definir a própria orientação sexual. Mas eu também questiono que, para efeitos práticos, vivemos numa sociedade que reprime orientações sexuais que não sejam a heterossexualidade.
Assim, como inferir se a orientação sexual declarada condiz com a realidade interna da pessoa ou se aquilo não é apenas manifestação de uma repressão que foi internalizada? Essa diferenciação pode ser extremamente importante, por exemplo, para que um psicólogo consiga ajudar um paciente a resolver conflitos que estejam ligados à orientação sexual da pessoa (i.e. autossabotagens cuja raiz são a homofobia internalizada). Logo, nem todo questionamento a respeito de uma sexualidade é deslegitimação/silenciamento (desde que, obviamente, o questionamento tenha o compromisso com o máximo de respeito possível). Entendo que
os conceitos de orientação sexual são muito limitados, principalmente por serem associados, na maioria das vezes, a um sistema binário de gênero. Mas algumas orientações sexuais que surgem na mídia parecem tão vazias de coerência que me fazem questionar a existência real delas.
Isso me leva a raiz: como definimos uma orientação sexual? Por ser um comportamento humano, eu, como um biólogo, acredito que deve ser considerado três fatores, principalmente, quando se trata da expressão de uma orientação sexual: os biológicos, os culturais e os psicológicos. Já adianto que minha visão não é nem de longe determinista, mas próxima de um discurso biológico pós moderno que
reconhece a interação de diversos fatores entre si.
Por fatores biológicos, quero dizer a existência (ou não) de uma necessidade fisiológica de satisfação sexual. Temos diversos tipos de necessidades fisiológicas como, por exemplo, de ingerir substâncias químicas das quais nosso corpo necessita (e, dependendo do alvo do desejo, damos nomes diferentes a estas necessidades - sede, para quando o corpo clama por água e fome para quando o corpo deseja outros tipos de nutrientes). É importante perceber que esses são nomes de referência para nossas necessidades fisiológicas, pois a fome pode se manifestar por uma vontade de comer alguns tipos específicos de comida ("não gostaria de fazer um lanche: estou com fome de comida de casa, tipo arroz com feijão e coisas semelhantes"...), de maneira que existem várias "fomes", várias "sedes", vários "sonos"... Se alguém tenta "enganar o próprio corpo" enchendo o estômago de outras substâncias químicas (tipo as pessoas que bebem água pra gerar a sensação de saciedade para a fome), ela não satisfaz a necessidade fisiológica que originou o desejo. Este, certamente, voltará com mais intensidade num futuro. Fisiologicamente, podemos dizer que a necessidade de satisfação do desejo sexual funciona de forma análoga ao que eu relatei acima a respeito das substâncias químicas de que necessitamos para nos manter vivos. Para não tornar isso aqui mais extenso, não vou entrar no mérito de que cada corpo tem uma fisiologia única (ou seja, funcionamos bioquimicamente diferentes uns dos outros, apesar de um padrão comum à nossa espécie - o que explica reações diferentes em cada indivíduo para um mesmo remédio, por exemplo), e de que pode haver uma influência
genética (ou
epigenética) na sexualidade humana, além de outros fatores biológicos que geram ainda hoje
pesquisas sobre o tema. Apenas citarei isso e, num futuro, pode ser que eu resolva fazer um post pra destrinchar melhor o que eu penso sobre isso.
Contudo, existe os fatores culturais que modelam a forma como satisfazemos esse desejo (é importante lembrar que inclui-se na cultura a educação formal, a educação informal e a educação não-formal, dentre outros fatores). Um exemplo de como a cultura interfere nas maneiras que temos para satisfazer nossa necessidade fisiológica de nutrientes é que um tipo de alimento muito popular numa determinada cultura pode ser considerado repulsivo ou mesmo não ser percebido como alimento em outras culturas (no sudeste asiático, baratas, aranhas, escorpiões, grilos, formigas, bichos da seda e outros artrópodes são vendidos como comida em barracas de espetinhos, coisa inimaginável na cultura brasileira). Podemos usar esse exemplo para compreender metaforicamente, como a cultura tem influência sobre a orientação sexual.
A cultura nos cria padrões do que é ou do que não é considerado atraente e isso delimita como podem ser expressas as sexualidades humanas.
Somado à cultura e aos fatores biológicos e culturais, existe também os fatores psicológicos envolvidos na formação da sexualidade humana. A trajetória pessoal de cada indivíduo que pode reforçar ou suprimir determinadas tendências comportamentais, na medida que cada experiência interage com as imagens mentais e com os modelos mentais do indivíduo. Quero deixar claro que, quando digo isso, não estou pensando num sentido estritamente ligado ao conceito do
Behaviorismo, mas algo mais próximo da
Psicologia Cognitiva. Considerando que imagens mentais e modelos mentais são formulados a partir da vivência dos indivíduos, a trajetória pessoal pode contribuir para moldar tendências comportamentais, incluindo aí a forma como o indivíduo lida com o próprio desejo sexual.
Antes que me acusem de abrir precedentes para métodos que pretendam interferir na sexualidade das pessoas, vale salientar que
a construção da sexualidade é um processo que inclui muitas variáveis e que a maioria delas é muito difícil de controlar, de forma que podemos considerar impossível querer intervir no processo de formação da sexualidade humana e conseguir o êxito em conduzi-la a um caminho previamente desejado por quem pretende interferir, sem que se produzam "sequelas" ou "resultados não-funcionais". Aliás, pode-se também considerar que as interferências intencionais na sexualidade humana não são capazes de alterar o que seria seu "destino natural".
Dessa forma, existe a possibilidade de o indivíduo ter uma tendência biológica, psicológica e cultural que o deixaria susceptível a vivenciar determinada orientação sexual, mas por alguns fatores de sua trajetória pessoal de vida, ele escolhe não viver (ou seja, o que chamamos de alguém "enrustido"). Neste caso, teríamos uma "orientação sexual potencial" (que foi reprimida por um fator psicológico e/ou cultural) e uma "orientação sexual declarada" (que é aquela que o indivíduo diz sobre si), sendo que das duas emergem de um conflito psicológico no qual o indivíduo não consegue, em muitas das vezes, se enxergar em sua totalidade. Na minha modesta opinião, G0ys e os Highsexuais são exemplos deste último caso. Parece haver um "malabarismo de argumentação" para justificar um distanciamento de uma orientação homossexual ou bissexual, na medida em que se observa inconsistências argumentativas.

Creio que G0ys e os Highsexuais são exemplos de inconsistência na definição de o que é uma orientação sexual, pois, para início de conversa, só abarcam em suas definições um dos gêneros. Uma pessoa homossexual, heterossexual, bissexual, demissexual ou assexual pode pertencer a qualquer gênero. Mas só pode ser g0y, por exemplo, quem for "homem" com "jeito de homem", que não curta penetração anal e que não se identifique como gay, nem tenha nada que remeta ao feminino. Assim, o termo g0y seria mais uma demonstração de machismo e homofobia que propriamente uma orientação sexual. Importante lembrar também que a questão de não haver sexo com penetração anal não define uma orientação sexual, pois está mais ligada à preferência de determinadas práticas sexuais - e homossexuais, bissexuais, heterossexuais e demissexuais podem ou não gostar de determinadas práticas (por exemplo, alguns pessoas gostam de penetração, enquanto existe os que
dispensam qualquer tipo de penetração - e isso vale para qualquer uma das orientações sexuais "clássicas"). Para os Highsexuais, além da crítica de que apenas homens se declaram "highsexuais", vale pensar se não é o caso no qual muita homofobia internalizada pode reprimir os desejos pessoais e que, com o uso da droga, a mente da pessoa consegue se livrar mais facilmente da autorrepressão, em semelhança do efeito já conhecido do álcool. Além disso, se dlecarar Highsexual expressa todo um apagamento da bissexualidade, como sintoma de uma bifobia internalizada (pois, em nossa sociedade monossexista, a maioria dos heteros condenaria os bissexuais por terem relações com pessoas do mesmo gênero e a maioria dos homossexuais condenaria os bissexuais por terem relações com pessoas de outro gênero ou por julgá-los como enrustidos, indecisos, etc.). Em todo o momento em que se fez piada sobre o termo "Highsexuais", ninguém cogitou a possibilidade da descoberta de uma possível bissexualidade, dada a influência de um pensamento monossexista de que não existem pessoas que possam se sentir atraídas por mais de um gênero.
Com esta postagem, assim como no texto em que faço uma
revisão teórica das limitações das categorias que temos para as orientações sexuais humanas, não quero invalidar a experiência alheia ou mesmo dar a palavra final sobre um assunto tão polêmico. Gostaria apenas de sugerir que, como temos uma necessidade humana de criar nomes para compreender as coisas e que esses nomes são referências genéricas, que criemos todos os nomes necessários (os tais rótulos). Mas que mantenhamos a cautela para não criar tantos nomes que, ao invés de facilitar a nossa compreensão do mundo, torne a nossa comunicação extremamente confusa. E, para encontrar o equilíbrio necessário, sugiro o questionamento respeitoso e a abertura também respeitosa para receber as respostas à crítica feita.