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sexta-feira, 8 de abril de 2016

"Você deve ser mais tolerante..."

Explicação necessária: as situações a seguir estão fora de ordem cronológica, mas estão ligadas ao assunto do post e fui escrevendo conforme me vinham à mente.

SITUAÇÃO 1:

Fui num encontro com pessoas que conheci pela internet e se dispuseram a começar um novo projeto artístico comigo. Fui usando um brinco e um batom lilás, porque resolvi expressar mais o que eu sinto a respeito da minha identidade de gênero (e, no dia, estava experienciando um estado bigênero masculino-feminino). No fim do encontro, quando todos se levantam para ir embora, um cara começa a dizer:

Portador da palavra de dewlls: "Bem, eu sou cristão, de uma religião mais tradicional. E tenho o dever de levar a palavra de dewllss onde eu estiver. E dewlls quer que todos nós nos arrependamos dos nossos pecados e comecemos a seguir os planos que ele tem para as nossas vidas! Minha religião me pede para divulgar a palavra em todos os lugares e eu tenho que dizer: é preciso se arrepender dos pecados e aceitar o plano de dewlls urgentemente!"

Instaurou-se um climão na mesa, recheado de um silêncio extremamente constrangedor. Eu o encarava nos olhos, para ver se ele teria coragem de dizer que o recado era direcionado à mim. Como ele não teve tal coragem, nada falei, porque não queria que ele se esquivasse dizendo que eu havia interpretado erroneamente as palavras dele.

Depois de um tempo, as pessoas se despediram alegando o avançar das horas e foram indo uma a uma embora. Aguardei até que quase todos tivessem ido embora, sentado no meu lugar, esperando que o autor do "discurso inspirado por dewlls" tivesse a coragem de ficar a sós comigo para dizer que o recado foi para mim (imaginando que, talvez, ele não quisesse ter testemunhas para fazê-lo). Contudo, ele foi embora antes e fiquei sentado na mesa com apenas mais um dos participantes da reunião, para quem perguntei:

Cara Comum: "Será que esse 'sermão' todo no fim da reunião foi pra mim?"

Coleguinha hetero cis da paz: "Sei lá. Mas coisas assim é melhor ignorar..."

SITUAÇÃO 2:

Estava chegando de viagem na terra natal do ex-Maridão (nesta ocasião, nós ainda estávamos casados) e fazia um frio danado. Eu usava um cachecol e estava com as duas mãos ocupadas segurando malas (situação semelhante a do ex-Maridão). Um velho bêbado pára em frente a mim e ao ex-Maridão e nos encara. Um homem, um pouco mais novo e menos bêbado que o primeiro, alcança o tal velho bêbado e o segura pelo braço. O velho então solta a seguinte frase:

Velho bêbado (*usando um tom de deboche*): "Vocês são boiolas? Eu tô achando que vocês são uns viadinhos!"

O cara mais novo saiu puxando o mais velho pra longe e eu já ia atrás deles pra brigar com o bêbado audacioso, quando ex-Maridão larga as malas e me segura.

ex-Maridão: "Calma!"

Cara Comum: "Calma o caralho! Vou deixar o cara chegar e falar o que quiser com a gente, usando um tom pejorativo, e ir embora como se nada tivesse acontecido?"

ex-Maridão: "Você precisa ter mais paciência! Não precisa dessa agressividade toda..."

SITUAÇÃO 3:

Eu participava de um grupo de WhatsApp que se propunha a desconstruir preconceitos contra efeminados. Toda vez que questões ligadas a gênero entravam em pauta (especialmente sobre gêneros não binários), galera respondia meus "textões" e meus "audios de mais de 3 minutos" com frases simpáticas como "não vou ler isso tudo" / "não vou ouvir a bíblia narrada".

Um dia, pela zigolhonésima vez em que eu afirmava que gêneros não binários não podem ser cisgêneros porque a sociedade como um todo nunca impõe a alguém um gênero não binário, recebi de volta a mesma resposta do início da discussão: "pessoa de gênero não binário é diferente de pessoa trans*!" Não aguentei mais aquela situação e explodi: "Olha, se galera não concorda com o óbvio que tento mostrar nas minhas explicações, sugiro estudar mais sobre o assunto, ler outras fontes mais resumidas que minhas argumentações aqui"...

É claro que o povo tomou como ofensa uma pessoa de gênero não binário falando para pessoas cis estudarem sobre gênero não binário (já que a maioria dessas pessoas cis tinha "conhecimento acadêmico sobre pessoas trans*"). Eu, naquele momento, era taxado de "guardião de verdades absolutas" e que não conseguia "lidar com opiniões diferentes", mesmo que essas opiniões quisessem ter a primazia de definir O QUE EU SOU E O QUE EU SINTO! Minhas vivências e meus estudos de nada valiam perante uma maioria que discordava (afinal, a maioria sempre tem razão, certo?). Uma das pessoas do grupo, num tom mais diplomata, me disse: "Dizer que as pessoas precisam estudar mais sobre o assunto foi um pouco arrogante. Você tem que entender que esta é uma temática nova e há muito desconhecimento ainda. Você precisa ser mais compreensivo com as pessoas, principalmente em relação a conhecimentos que não estão socialmente cristalizados..."

SITUAÇÃO 4:

Numa reunião de uma ONG de luta pelos direitos de pessoas LGBTs:

Militante GGGG: Porque a nossa luta tem que trazer melhorias reais na vida de gays, de lésbicas e de pessoas trans*!

Cara Comum: Sério que você disse essa frase?

Militante GGGG: Claro! Não estou entendendo o seu tom de crítica...

Cara Comum: É que achei que um militante de uma ONG "LG-B-T" não iria esquecer de citar as pessoas bissexuais...

Militante GGGG: Ah, Cara Comum, você é radical demais... Você briga com a gente como se nós fôssemos o inimigo! Eu não sou o seu inimigo! Os nossos reais inimigos são o Bolsonaro, o Marco Feliciano... Você precisa ser mais tolerante com seus companheiros de causa...

SITUAÇÃO 5:

Uma prima distante minha, num bate-papo pelo Facebook, perguntava como foi assumir minha sexualidade para a minha família. Eu respondi:

Cara Comum: "Bem, eles fizeram tortura psicológica comigo, chamaram o povo da igreja católica que eles frequentam pra me exorcizar e me expulsaram de casa por isso..."

Prima Distante: "Ah, mas você tem que entender que eles são de outra geração, que foram criados de uma maneira diferente, que eles têm outros valores..."

Cara Comum: "Eu até entendo. Mas isso não deixa de me machucar, de me fazer mal, né?"

Prima Distante: "É, mas você precisa ser mais tolerante com eles. Afinal, são seus pais, né?"

SITUAÇÃO 6:

Achei esse print no Facebook que foi EXTREMAMENTE libertador para mim:
"Mas no final das contas, quem morre mesmo somos nós..."

sexta-feira, 25 de março de 2016

Multiplicidade de gêneros e um nó na cabeça

Amiguë agênerë: Você viu a página "Trans Boy" no Facebook? A descrição é: "Pensamentos de um garoto trans não binário.". Eu fiquei sem entender... Como assim a pessoa se diz um homem trans não-binário? Se é homem, como pode ser não-binário?

Cara Comum: Confesso que eu também fiquei sem entender...

Amiguë Agênerë: Pois é... Vou continuar acompanhando a página pra entender melhor...

Cara Comum: As possibilidades de gênero são difíceis até pra gente que tenta ajudar o mundo a quebrar a visão cristalizada e restrita sobre a diversidade sexual, imagina pra população em geral entender... Pra você ter ideia do desconhecimento da população em geral sobre a sexualidade, no Dia do Orgulho e da Visibilidade Bissexual do ano passado, participei de uma ação em que afixamos um banner na Praça 7 aqui em BH [Nota para quem nunca esteve em terras belo horizontinas: é a Praça mais movimentada da cidade, ficando no Centro. Está para BH como a Praça da Sé está para Sampa] que dizia apenas: "Dia 23 de setembro: Dia do Orgulho e da Visibilidade Bissexual". Quando eu estava retirando o tal banner, passou um cara que leu o que estava escrito e, provavelmente vendo que eu estava retirando e não entendendo que eu tinha participação naquela manifestação, me disse com o sorriso malicioso: "É bom que sobra mais mulher pra gente, né?"...

Amiguë Agênerë: Sério??? Hahahahahahahahaahahahahahahaha... Como se bissexuais não sentissem atração por mulher, né?

Cara Comum: Bem, na verdade algumas pessoas bissexuais não se sentem atraídas por mulheres... Afinal, bissexuais sentem atração por mais de um gênero, diferentemente das pessoas monossexuais (que são os heterossexuais e homossexuais). Como temos praticamente infinitas possibilidades de gêneros, uma pessoa bissexual pode sentir atração por pessoas de dois ou mais gêneros quaisquer, porém não se sentirem atraídas por mulheres... Mas o grande problema do cara é achar que toda pessoa bissexual não sente atração por mulher. É aquela visão binária de que OU é hetero OU é gay...

Amiguë Agênerë: Péra! Para tudo!!! Como assim??? Bissexual que não sente atração por mulher???

Cara Comum: É... Como eu acabei de explicar...

Amiguë Agênerë: Gente... Nunca pensei nessa possibilidade...

Cara Comum: Tá vendo? E isso porque você é uma pessoa de gênero não-binário... Imagina pra população em geral, que, em sua maioria é hetero cis normativa e apegada a sua visão de mundo binária e de heterossexualidade compulsória?

Amiguë Agênerë: Pois é... Estamos malz, migs...

Cara Comum: Pra caramba...

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PS: Pesquisando pela internet, consegui descobrir e entender melhor sobre a identidade de gênero de um um homem trans não-binário numa definição da Wikia Identidades de Gênero

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Eu e meu gênero fluido

Desde pequeno, eu nunca me senti 100% do gênero masculino, nem 100% do gênero feminino. Eu era uma pessoa e só. Isso de menino ou menina, homem ou mulher não fazia importância, nem diferença, pra mim. Sabia que a sociedade me chamava de menino, mas isso era uma coisa que eles diziam a respeito de mim e não algo que eu declarava ser meu. Era como se me chamassem de humano, ou terráqueo: eram palavras que, no dia a dia, não fazia diferença prática na minha vida para me diferenciar das demais pessoas...

Quando eu tinha uns dois anos, eu abria o guarda-roupa da minha vó que guardava as roupas recém lavadas, mas ainda não passadas, e ficava brincando de me vestir com as roupas dos meus pais. Num dia, ela me viu vestindo uma calcinha da minha mãe, que eu achava linda. Era uma calcinha que tinha como estampa uma história em quadrinhos! E, pra mim, aquela peça de roupa era tão bonita e colorida quanto as minhas cuecas com estampas de desenho animado. Não entendi porque minha vó ficou tão brava comigo e disse que eu não podia me vestir com as roupas que não eram minhas. A partir deste dia, eu entrava escondido nesta parte do guarda-roupa e ficava lá trancado, me vestindo com as "roupas proibidas", aproveitando algum momento em que minha vó estivesse muito ocupada para que ela não me descobrisse.

Quando eu tinha 3 anos, meus pais me pegaram tirando a roupa e mostrando meu corpo pra um coleguinha (que tinha pedido pra me ver pelado). Não entendia muito bem como a vida funcionava e não via nada de errado nisso. Mas meus pais falaram pra mim que aquilo era errado e que eu não devia fazer, para não ser motivo de piadas pelas outras pessoas. Minha mãe dizia:
-"Eles vão te chamar de "mulherzinha"! Você vai gostar disso?"
E eu não respondia nada, pois não conseguia entender porque aquilo era algo ruim. Aliás, também não entendia o porquê de minha mãe, que era mulher, dizer que era ruim ser chamado de "mulherzinha"... Nada daquilo fazia sentido!

"Menino" e "menina" só passaram a fazer sentido pra mim depois que comecei a frequentar a escola. "Fila de meninos" x "Fila de meninas", "banheiro de meninos" x "banheiro de meninas", "cores de meninos" x "cores de meninas", "brincadeiras de meninos" x "brincadeiras de meninas" e tantas coisas do tipo me ensinaram que eu tinha que ficar do lado dos meninos e era completamente errado agir de forma diferente.

Aceitei essa imposição e agi no automático durante muito tempo, mesmo que, de vez em quando, alguém me acusasse de "ter jeito de menininha" ou ser "mulherzinha". A essa altura da vida, isso me incomodava porque me fazia sentir que eu não me encaixava no grupo que era "o certo pra mim" e nem pertencia ao "outro grupo" (e lá, eu também não encontraria abrigo). Eu, na verdade, estava isolado, fora dos grupos, sozinho, "diferente de todo mundo", sem alguém que compreendesse o que eu era ou sentia. Então, o que me restava era me esforçar ao máximo para aprender a ser menino, rapaz, homem. Porque aquilo era o certo a fazer.

Na adolescência, eu comecei a questionar a minha sexualidade, mas não meu gênero. Só no início da juventude (com meus 23, 25 anos), é que eu comecei a lançar olhos para esta minha questão. Eu perguntava a amigos mais próximos se eles sentiam, assim como eu, que o próprio gênero não era uma coisa estática, mas que ia variando ao longo do tempo. Eu explicava a eles que eu poderia me sentir um "homem pleno", em alguns dias, poderia me sentir com "gêneros intermediários entre homem e mulher" noutros, que eu, às vezes, me sentia pertencendo a "gêneros com características diferentes de homem, mulher ou algum intermediário disso"... Mais uma vez, meus amigos discordavam de mim, e diziam que isso não ocorria com eles. Mais uma vez, eu não me encaixava num grupo que era "o certo pra mim" e nem pertencia ao "outro grupo" (e lá, eu também não encontraria abrigo). Continuava isolado, fora dos grupos, sozinho, "diferente de todo mundo", sem alguém que compreendesse o que eu era ou sentia.

Somente, há um ano e meio, quando me aprofundei mais no conhecimento sobre orientação sexual e identidade de gênero é que li uma descrição sobre "gênero fluido", que é uma identidade de gênero trans não binária, e me identifiquei totalmente. Senti-me compreendido por alguém (a galera dos movimentos que discutem gênero me entendiam!), eu agora me encaixava num grupo, não estava mais sozinho!

Então, comecei a me permitir vivenciar essa fluidez, experimentar um pouco, "brincar" com minha expressão de gênero... Faz seis meses, comprei um vestido, uma blusa feminina, brincos, batons, esmaltes... As vezes uso tais vestimentas, mas sempre mesclando o quanto de masculino e feminino eu desejo expressar naquele momento (refletindo o meu estado interior). Daí, tem combinação de barba, batom e brinco; corpo tipicamente masculino de vestido; blusa feminina, esmalte, brincos, barba e coturno...

Não estou fazendo tais experimentações o tempo todo. Primeiro porque, às vezes, não me sinto num gênero que me faça ter vontade de usar algo diferente do meu vestuário habitual. O gênero fluido tem dessas complicações de não ser constante, né? Então, pra ser coerente com o que sinto, não posso fazer uma experimentação ostensiva, "full time". Tenho que respeitar o tempo do meu sentir, a fluidez do meu gênero. Outra razão é que decidi não vivenciar um processo completo de uma vez, porque não dá pra chegar no meu serviço (trabalho numa escola), pros meus familiares e outros setores da minha vida que teriam grande resistência a uma "mudança" sem que eu esteja em segurança do que eu quero e já pronto pra me defender dos ataques que, com certeza, virão. Eu, como toda pessoa, preciso de um tempo pra ir vivenciando meu desejo e fazer autodescobertas. E o que eu posso dizer é que esta fase está sendo muito divertida e feliz.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Travestchy e orientação sexual não é bagunça!!

Já aviso de antemão: o texto é longo e polêmico. Vai ter gente me jurando de morte depois de ler isso, mas creio que vale a pena!

Através do site Superpride, fiquei sabendo da existência de "novas orientações sexuais", como os G0ys e os Highsexuais. Quando surgiu isso tudo aí, fiquei me questionando: ok que o que a pessoa sente é muito mais determinante do que a opinião externa para se definir a própria orientação sexual. Mas eu também questiono que, para efeitos práticos, vivemos numa sociedade que reprime orientações sexuais que não sejam a heterossexualidade.

Assim, como inferir se a orientação sexual declarada condiz com a realidade interna da pessoa ou se aquilo não é apenas manifestação de uma repressão que foi internalizada? Essa diferenciação pode ser extremamente importante, por exemplo, para que um psicólogo consiga ajudar um paciente a resolver conflitos que estejam ligados à orientação sexual da pessoa (i.e. autossabotagens cuja raiz são a homofobia internalizada). Logo, nem todo questionamento a respeito de uma sexualidade é deslegitimação/silenciamento (desde que, obviamente, o questionamento tenha o compromisso com o máximo de respeito possível). Entendo que os conceitos de orientação sexual são muito limitados, principalmente por serem associados, na maioria das vezes, a um sistema binário de gênero. Mas algumas orientações sexuais que surgem na mídia parecem tão vazias de coerência que me fazem questionar a existência real delas.

Isso me leva a raiz: como definimos uma orientação sexual? Por ser um comportamento humano, eu, como um biólogo, acredito que deve ser considerado três fatores, principalmente, quando se trata da expressão de uma orientação sexual: os biológicos, os culturais e os psicológicos. Já adianto que minha visão não é nem de longe determinista, mas próxima de um discurso biológico pós moderno que reconhece a interação de diversos fatores entre si.

Por fatores biológicos, quero dizer a existência (ou não) de uma necessidade fisiológica de satisfação sexual. Temos diversos tipos de necessidades fisiológicas como, por exemplo, de ingerir substâncias químicas das quais nosso corpo necessita (e, dependendo do alvo do desejo, damos nomes diferentes a estas necessidades - sede, para quando o corpo clama por água e fome para quando o corpo deseja outros tipos de nutrientes). É importante perceber que esses são nomes de referência para nossas necessidades fisiológicas, pois a fome pode se manifestar por uma vontade de comer alguns tipos específicos de comida ("não gostaria de fazer um lanche: estou com fome de comida de casa, tipo arroz com feijão e coisas semelhantes"...), de maneira que existem várias "fomes", várias "sedes", vários "sonos"... Se alguém tenta "enganar o próprio corpo" enchendo o estômago de outras substâncias químicas (tipo as pessoas que bebem água pra gerar a sensação de saciedade para a fome), ela não satisfaz a necessidade fisiológica que originou o desejo. Este, certamente, voltará com mais intensidade num futuro. Fisiologicamente, podemos dizer que a necessidade de satisfação do desejo sexual funciona de forma análoga ao que eu relatei acima a respeito das substâncias químicas de que necessitamos para nos manter vivos. Para não tornar isso aqui mais extenso, não vou entrar no mérito de que cada corpo tem uma fisiologia única (ou seja, funcionamos bioquimicamente diferentes uns dos outros, apesar de um padrão comum à nossa espécie - o que explica reações diferentes em cada indivíduo para um mesmo remédio, por exemplo), e de que pode haver uma influência genética (ou epigenética) na sexualidade humana, além de outros fatores biológicos que geram ainda hoje pesquisas sobre o tema. Apenas citarei isso e, num futuro, pode ser que eu resolva fazer um post pra destrinchar melhor o que eu penso sobre isso.

Contudo, existe os fatores culturais que modelam a forma como satisfazemos esse desejo (é importante lembrar que inclui-se na cultura a educação formal, a educação informal e a educação não-formal, dentre outros fatores). Um exemplo de como a cultura interfere nas maneiras que temos para satisfazer nossa necessidade fisiológica de nutrientes é que um tipo de alimento muito popular numa determinada cultura pode ser considerado repulsivo ou mesmo não ser percebido como alimento em outras culturas (no sudeste asiático, baratas, aranhas, escorpiões, grilos, formigas, bichos da seda e outros artrópodes são vendidos como comida em barracas de espetinhos, coisa inimaginável na cultura brasileira). Podemos usar esse exemplo para compreender metaforicamente, como a cultura tem influência sobre a orientação sexual. A cultura nos cria padrões do que é ou do que não é considerado atraente e isso delimita como podem ser expressas as sexualidades humanas.

Somado à cultura e aos fatores biológicos e culturais, existe também os fatores psicológicos envolvidos na formação da sexualidade humana. A trajetória pessoal de cada indivíduo que pode reforçar ou suprimir determinadas tendências comportamentais, na medida que cada experiência interage com as imagens mentais e com os modelos mentais do indivíduo. Quero deixar claro que, quando digo isso, não estou pensando num sentido estritamente ligado ao conceito do Behaviorismo, mas algo mais próximo da Psicologia Cognitiva. Considerando que imagens mentais e modelos mentais são formulados a partir da vivência dos indivíduos, a trajetória pessoal pode contribuir para moldar tendências comportamentais, incluindo aí a forma como o indivíduo lida com o próprio desejo sexual.

Antes que me acusem de abrir precedentes para métodos que pretendam interferir na sexualidade das pessoas, vale salientar que a construção da sexualidade é um processo que inclui muitas variáveis e que a maioria delas é muito difícil de controlar, de forma que podemos considerar impossível querer intervir no processo de formação da sexualidade humana e conseguir o êxito em conduzi-la a um caminho previamente desejado por quem pretende interferir, sem que se produzam "sequelas" ou "resultados não-funcionais". Aliás, pode-se também considerar que as interferências intencionais na sexualidade humana não são capazes de alterar o que seria seu "destino natural".

Dessa forma, existe a possibilidade de o indivíduo ter uma tendência biológica, psicológica e cultural que o deixaria susceptível a vivenciar determinada orientação sexual, mas por alguns fatores de sua trajetória pessoal de vida, ele escolhe não viver (ou seja, o que chamamos de alguém "enrustido"). Neste caso, teríamos uma "orientação sexual potencial" (que foi reprimida por um fator psicológico e/ou cultural) e uma "orientação sexual declarada" (que é aquela que o indivíduo diz sobre si), sendo que das duas emergem de um conflito psicológico no qual o indivíduo não consegue, em muitas das vezes, se enxergar em sua totalidade. Na minha modesta opinião, G0ys e os Highsexuais são exemplos deste último caso. Parece haver um "malabarismo de argumentação" para justificar um distanciamento de uma orientação homossexual ou bissexual, na medida em que se observa inconsistências argumentativas.

Creio que G0ys e os Highsexuais são exemplos de inconsistência na definição de o que é uma orientação sexual, pois, para início de conversa, só abarcam em suas definições um dos gêneros. Uma pessoa homossexual, heterossexual, bissexual, demissexual ou assexual pode pertencer a qualquer gênero. Mas só pode ser g0y, por exemplo, quem for "homem" com "jeito de homem", que não curta penetração anal e que não se identifique como gay, nem tenha nada que remeta ao feminino. Assim, o termo g0y seria mais uma demonstração de machismo e homofobia que propriamente uma orientação sexual. Importante lembrar também que a questão de não haver sexo com penetração anal não define uma orientação sexual, pois está mais ligada à preferência de determinadas práticas sexuais - e homossexuais, bissexuais, heterossexuais e demissexuais podem ou não gostar de determinadas práticas (por exemplo, alguns pessoas gostam de penetração, enquanto existe os que dispensam qualquer tipo de penetração - e isso vale para qualquer uma das orientações sexuais "clássicas"). Para os Highsexuais, além da crítica de que apenas homens se declaram "highsexuais", vale pensar se não é o caso no qual muita homofobia internalizada pode reprimir os desejos pessoais e que, com o uso da droga, a mente da pessoa consegue se livrar mais facilmente da autorrepressão, em semelhança do efeito já conhecido do álcool. Além disso, se dlecarar Highsexual expressa todo um apagamento da bissexualidade, como sintoma de uma bifobia internalizada (pois, em nossa sociedade monossexista, a maioria dos heteros condenaria os bissexuais por terem relações com pessoas do mesmo gênero e a maioria dos homossexuais condenaria os bissexuais por terem relações com pessoas de outro gênero ou por julgá-los como enrustidos, indecisos, etc.). Em todo o momento em que se fez piada sobre o termo "Highsexuais", ninguém cogitou a possibilidade da descoberta de uma possível bissexualidade, dada a influência de um pensamento monossexista de que não existem pessoas que possam se sentir atraídas por mais de um gênero.

Com esta postagem, assim como no texto em que faço uma revisão teórica das limitações das categorias que temos para as orientações sexuais humanas, não quero invalidar a experiência alheia ou mesmo dar a palavra final sobre um assunto tão polêmico. Gostaria apenas de sugerir que, como temos uma necessidade humana de criar nomes para compreender as coisas e que esses nomes são referências genéricas, que criemos todos os nomes necessários (os tais rótulos). Mas que mantenhamos a cautela para não criar tantos nomes que, ao invés de facilitar a nossa compreensão do mundo, torne a nossa comunicação extremamente confusa. E, para encontrar o equilíbrio necessário, sugiro o questionamento respeitoso e a abertura também respeitosa para receber as respostas à crítica feita.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Orientação sexual e identidade de gênero: para além do binarismo

Este é um post básico, mas serve até pra quem já se considera num "nível avançado" de entendimento sobre a sexualidade humana. Posso dizer isso porque as diversas áreas do conhecimento humano continuam estudando a sexualidade humana e o progresso crescente trouxe tantas mudanças que mesmo as pessoas mais experientes nesse assunto podem se perder. Farei aqui, portanto, um registro de alguns dos conceitos básicos, mas nem sempre tão claro para todos.

Grande parte da mudança de significado de alguns conceitos básicos se deve ao novo entendimento a respeito do que é gênero. Logo, primeiramente, vamos fazer uma distinção entre sexo e gênero, seguida de uma explanação sobre alguns dos possíveis gêneros para depois rever as orientações sexuais frente a esse panorama.

Sexo se refere principalmente à caracteres biológicos. Engloba uma configuração de cromossomos, hormônios (e o balanço hormonal), gônadas (ovários, testículos), unidades reprodutivas (espermatozóide, óvulo), anatomia interna e externa e características biológicas sexuais secundárias. Muita gente considera o sexo biológico como algo dicotômico, como se houvesse apenas duas opções: macho e fêmea. Contudo, a Biologia contemporânea reconhece que esse sistema binário é incapaz de compreender as características sexuais, tanto da espécie humana como de outros seres vivos dióicos, visto que podem existir os intersexuais (indivíduos que apresentam diversas combinações dos caracteres genéticos, fisiológicos e/ou anatômicos, de forma que os termos "macho" e "fêmea" não conseguem defini-los de maneira precisa) e os indivíduos hermafroditas (esse termo vale para seres vivos que realizam reprodução sexuada e possuem em seus corpos sistemas reprodutores completos, de forma que, simultaneamente, são "machos" e "fêmeas" reprodutivamente funcionais). Como a espécie humana não é composta, em sua maioria, por indivíduos hermafroditas (já que não somos classificados como uma espécie monóica), é extremamente raro (para não dizer impossível) encontrarmos um indivíduo humano que possa ser considerado um hermafrodita verdadeiro (ou seja, reprodutivamente funcional, tanto como "macho" quanto como "fêmea"). Além disso, existe um grande estigma ofensivo associado à palavra hermafrodita, quando se refere a um ser humano, de forma que, mesmo num caso de hermafroditismo verdadeiro, é aconselhável que se use socialmente o termo "interssexual" ao se referir a uma pessoa.

Gênero está mais vinculado à sua própria percepção de quem você é (ou seja, homem, mulher, intersexual, transgênero etc.). Dessa forma, o gênero tem a ver, principalmente, com qualidades socialmente reconhecidas como masculinas ou femininas ou nenhuma delas ou ambas. De maneira semelhante ao que acontece com o sexo biológico, somos socialmente ensinados a considerar o gênero como apenas uma dentre duas opções: homem ou mulher. Novamente, esse sistema binário é insuficiente para a compreensão do gênero de todos os seres humanos, especialmente através das diversas culturas existentes. É válido ainda lembrar que uma pessoa pode se identificar com determinado gênero, mas ser percebida pelas outras pessoas erroneamente. Por isso, a identidade de gênero (como cada pessoa se identifica) nem sempre está relacionada a uma expressão de gênero. E, por tudo isso, faz-se necessário a expansão dos conceitos de gênero. Como os nomes que as pessoas usam para definir a própria identidade de gênero são dinâmicos, farei a seguir uma relação de algumas das possíveis identidades de gêneros, sem a intenção, contudo, de esgotar o assunto nem (in)validar determinadas identidades de gênero.

Algumas das possíveis identidades de gênero que podem estar dentro das condições de cisgêneros ou transgêneros:

  • Cisgêneros (pessoas cis ou cissexuais): Pessoas cuja identidade de gênero é concordante com o gênero que lhe foi atribuído (antes ou após seu nascimento) em razão de uma norma social cissexista que impõe um determinado gênero a um sexo biológico específico. Pessoas cisgêneras são sempre binárias, porque os gêneros designados são binários.
    • Mulher Cisgênero (pode ser abreviado como "mulher cis"): uma pessoa que foi atribuída (antes ou após seu nascimento) ao gênero feminino e ao sexo biológico de uma típica fêmea da espécie humana e se identifica com/ se apresenta como do gênero feminino.
    • Homem Cisgênero (pode ser abreviado como "homem cis"): uma pessoa que foi atribuída (antes ou após seu nascimento) ao gênero masculino e ao sexo biológico de um macho típico da espécie humana e se identifica com/ se apresenta como do gênero masculino.
  • Transgêneros (transexuais): São pessoas cujo gênero difere do gênero que lhe foi atribuído (imposto) pela sociedade. Pessoas transgênero ou transexuais podem ser binárias (mulheres e homens transgênero ou transexuais) ou não-binárias (que NÃO se encaixam nas classificações binárias de "mulher" nem "homem"). O termo "trans" pode ser usado como diminutivo de transgênero e transexual, porém há pessoas que se identificam somente com trans e não com transgênero e nem com transexual e isto deve ser respeitado. Algumas vezes (mas não necessariamente), uma pessoa trans* faz ou gostaria de fazer alterações em seu corpo físico com cirurgias, hormônios, ou outras modificações (por exemplo, treinamento vocal, vestimentas etc.) de forma a ser socialmente percebida como alguém do gênero a que se identifica. Pessoas trans que fazem essas modificações vivenciam um período na vida que chamam de "transição", no qual ainda estão adequando o próprio corpo à percepção social que gostariam de ter.
    • Mulher Transgênero (pode ser abreviado como "mulher trans" - ou "MTF", principalmente no caso da pessoa se submete a um processo de transição): uma pessoa que foi atribuída (antes ou após seu nascimento) ao sexo biológico de um macho típico da espécie humana e se identifica com/ se apresenta como do gênero feminino. Em geral, gosta de ser tratada por pronomes femininos (ela, dela, etc.) ou de termos de gênero neutro.
    • Homem Transgênero (pode ser abreviado como "homem trans" - ou "FTM", principalmente no caso da pessoa se submete a um processo de transição): uma pessoa que foi atribuída (antes ou após seu nascimento) ao sexo biológico de uma típica fêmea da espécie humana, contudo se identifica com/ se apresenta como do gênero masculino. Em geral, gosta de ser tratada por pronomes masculinos (ele, dele, etc.) ou de termos de gênero neutro.
    • Bigênero binário: alguém que se identifica como "homem" e "mulher" ao mesmo tempo. Uma identidade bigênero binária é uma combinação destes dois gêneros, mas não obrigatoriamente uma repartição meio a meio, já que quem se identifica assim muitas vezes sente – e expressa – cada um desses gêneros por inteiro.
    • Andrógino: é utilizado por quem tem qualidades socialmente chamadas de masculinas e femininas, mas se considera um terceiro gênero separado. Essa palavra tem raízes no latim: “andro” quer dizer “homem” e “gino” quer dizer “mulher”. Alguns andróginos podem se identificar como "gender benders", o que significa que estão intencionalmente distorcendo (“bending”) ou desafiando/transgredindo os papéis de gênero estabelecidos pela sociedade.
    • Neutrois: um gênero neutro e bem determinado que se posicionam totalmente fora e sem qualquer conexão com os gêneros feminino e masculino.
    • Multigênero: pessoas que se identificam com mais de um gênero. Podem ser bigêneros (neste caso, podem ser dois gêneros quaisquer), trigêneros (três gêneros quaisquer) pangêneros (experiência de gênero que se refere a uma enorme multiplicidade de gêneros que pode ou não tender ao infinito - ou seja, pode ir além do conhecimento atual sobre gêneros) ou poligêneros (multiplicidade de gêneros semelhante à pangeneridade, porém, geralmente, engloba menos gêneros).
    • Agênero: Alguém que não se identifica com qualquer tipo de identidade de gênero. Esse termo também pode ser utilizado por alguém que intencionalmente não demonstra qualquer representação de gênero reconhecida. Há quem passe por tratamentos hormonais e/ou cirurgias para fazer com que seus corpos se adequem a sua identidade de gênero nenhum. Algumas pessoas usam termos similares como “sem gênero”. 
    • Gênero Fluido: Alguém cuja identidade de gênero e apresentação não se limita a apenas uma categoria de gênero. Pessoas de gênero fluido podem ter compreensões dinâmicas ou flutuantes do próprio gênero, mudando de um para outro de acordo com o que sentir melhor no momento. Por exemplo, uma pessoa de gênero fluido pode se sentir mais como um homem num dia e mais como uma mulher no dia seguinte, ou sentir que nenhum dos termos se aplica a ela.
    • Gênero em Dúvida: Alguém que pode estar colocando em dúvida seu gênero ou sua identidade de gênero, e/ou considera outras maneiras de experimentar ou expressar seu gênero ou apresentação de gênero.

Como foi possível perceber acima, não é possível utilizar as orientações sexuais baseadas num sistema binário de gênero. Logo, as orientações sexuais também são mais complexas do que já foram consideradas antigamente. Abaixo, pretendo listar algumas das possíveis orientações sexuais sem a intenção, contudo, de esgotar o assunto nem (in)validar determinadas orientações sexuais.

Assim, algumas das possíveis orientações sexuais são:
  • Monossexual: conjunto de todas as orientações sexuais de pessoas que sentem atração por um único gênero.
    • Homossexual: alguém que sente atração sexual pelo mesmo gênero a que se identifica (neste caso, o prefixo "homo" é entendido como igual).
    • Heterossexual: alguém que sente atração sexual por UM gênero diferente do próprio gênero (neste caso, o prefixo "hetero" é entendido como diferente). É importante lembrar que NÃO se pode dizer que uma pessoa heterossexual é atraída pelo “gênero oposto”, porque não existe “gênero oposto”.
  • Bissexual: conjunto de todas as sexualidades que sentem atração sexual pelo mesmo gênero e também por gêneros diferentes (neste caso, o prefixo "bi" faz referência aos prefixos "homo" e "hetero", assumindo o significado de que trata-se de uma pessoa que sente atração por pessoas de gêneros que são iguais ao próprio gênero e também por pessoas que tem um gênero diferente). É um termo "guarda-chuva" pois, abriga em si diversos termos correspondentes a identidades de gêneros não-monossexuais.
    • Polissexual (muitas vezes um sinônimo para uma acepção mais restrita da palavra "bissexual"): pessoa que sente atração sexual por vários gêneros (dois ou mais), mas não todos. Exemplo: alguém que sente atração sexual pela maioria dos gêneros, exceto por pessoas agêneras.
    • Pansexual (ou Onissexual): (1) pessoa que sente atração sexual por todos os gêneros; (2) pessoa que sente atração sexual independentemente do gênero, ou seja, o gênero não importa.
  • Assexual: pessoa que não sente atração sexual por outras pessoas.
  • Demissexual: (1) pessoa que estaria entre a assexualidade completa (100%) e a monossexualidade/bissexualidade completa (100%); (2) quem somente sente atração sexual por uma pessoa após desenvolver uma forte conexão emocional com a mesma; (3) pode ser também o grau do tipo de atração, isto é, o modo com que a atração sexual se dá por algum gênero em específico. Por exemplo, uma pessoa bissexual pode ter também demissexualidade em relação a um gênero em específico.
Por ser este um assunto muito complexo, reforço o caráter de esboço desta postagem, a consciência do caráter efêmero desses conceitos e a abertura de minha parte para receber e analisar críticas que proponham acréscimos e/ou alterações.
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