De todos da minha família, minha avó materna é o meu maior elo afetivo. Fazer esse exercício de encarar minha vó de frente, despi-la da minha fantasia e fazer um relato mais próximo do que ela é de verdade é algo extremamente complicado. Sem dúvida, o relato mais desafiador dentre todos os possíveis a serem feitos sobre minha família. E também o mais singular. Tanto que este não pertence à série "estranhos da minha família". Porque minha vó nunca me foi estranha. Talvez haja pouca fantasia para ser retirada de sua pessoa, visto que ela foi uma das poucas pessoas que se deixou mostrar pra mim por inteira.
Nunca conheci nenhum dos avós paternos e meu avô materno sempre foi ausente. Assim, minha vó era a única. E eu o primeiro neto dela (e declaradamente o preferido). Éramos um do outro. Até os meus seis anos de idade, foi ela quem me criou, enquanto meus pais trabalhavam fora pra sustentar a casa. Ela foi mais minha mãe que minha própria mãe.
Era uma pessoa que conseguia ter uma ternura mesmo nos mais complicados momentos. Enquanto escrevo isso, consigo me lembrar de sua voz branda e firme me dizendo que eu tinha que fazer o "para casa" antes de poder brincar.
Era uma velha que saiu de uma cidade do interior pra viver na capital, mas que levava a vida como se ainda vivesse no interior. Apreciava o cultivo de todo tipo de planta: as ornamentais, as hortaliças, os ramos medicinais... Contava histórias que transbordavam supertição e lendas populares da cidade de onde ela veio. Minha vó vivia num mundo místico onde não se podia comer manga e beber leite, onde se tinha a obrigação de defumar a casa com arruda e alecrim toda sexta-feira da paixão, onde se rezava toda manhã e toda noite...
Minha vó foi a primeira pessoa que me reprimiu também. Foi, ternamente, que ela me proibiu de ver minha imagem refletida no espelho aos meus 3 anos, quando eu pulava na cama dos meus pais sem roupa após sair do banho. Foi escondido dela que eu vesti uma calcinha da minha mãe que eu achava tão bonita. Foi escondido dela que eu tomei Aas infantil porque achava aquele gosto delicioso.
Ela convivia com o reumatismo, artrite, flebite e diabetes, dentre outras doenças. Essa fragilidade da sua saúde nos aproximava porque cuidávamos um do outro e ambos tinham responsabilidade sobre o outro. Éramos iguais, parceiros. Consigo me lembrar da dedicação que eu tinha para fazer massagens em seus pés doentes. Ficava extremamente feliz quando percebia que minhas mãos atenuavam o sofrimento expresso em seu rosto.
Ela tinha milhares de manias e uma das que mais me irritava era a de falar em voz alta durante a noite, seja para pedir um copo de água, seja para perguntar se eu estava bem, ou mesmo pra ordenar que eu dormisse. Ela era muito teimosa e costumava a responder concordando com a pessoa mas, no fim, acabar fazendo do jeito dela. Ela escondia pães e outros tipos de comida para que houvesse algo a comer no dia seguinte.
Me ensinou a comer pão com um copo de água com açúcar, quando acabava o leite... Fazia o mingal de fubá mais gostoso que eu já comi e me ensinou a amar chá de capim cidreira. Me ensinou também a comer romã, debulhando antes grão por grão. Me ensinou também persistência, pois mesmo doente não conseguia simplesmente não fazer nada e realizava praticamente todas as tarefas domésticas.
Meu pai a tratava mal, xingando-a e ridicularizando-a. Minha mãe gritava com ela o tempo todo porque não tinha paciência para suas manias. Meu irmão, quando ela se opunha às vontades dele, chutava-lhe a perna doente. Isso me deixava irado, o que só aumentava quando eu via que meus país não faziam nada a respeito.
Quando contei para meus pais sobre minha sexualidade, eles começaram uma cruzada contra meu namorado da época. Minha vó, no entanto, me disse apenas que meu pai não gostava dele, mas que não era pra eu ficar triste com isso porque meu pai era meio bruto mesmo. Quando meus pais me expulsaram de casa, ela sofreu muito. Só voltei a pisar naquela casa por causa dela. Eu sabia que tinha que aproveitar o tempo que ainda restava para conviver com minha avó.
Minha avó era uma velha com a cabeça extremamente lúcida até os 85 anos. Quando alguém queria lembrar de algo, pedia que ela ajudasse a lembrar. E, incrivelmente, ela lembrava na hora marcada sem precisar consultar o relógio. Eu brincava que ela tinha um relógio dentro daquela cabeça.
Porém, depois dos 85, ela começou a se esquecer das coisas. Ficou mais quieta, não tinha a mesma agilidade de antes, custava a entender o que a gente dizia a ela. Uma vez ela conversou com minha ex-namorada como se estivesse conversando com minha cunhada da época (ainda bem que ela elogiou minha namorada pra ela mesma!). Aos poucos, foi ficando cada vez mais introspectiva. Eu sentia que minha vó estava sumindo aos pouquinhos.
Faleceu aos 92, vítima do que começou como uma gripe e terminou como uma parada cardíaca. Eu fiz questão de não guardar a data do seu falecimento. Prefiro lembrar dela viva. É a forma que eu encontrei de lidar com a saudade, que hoje tem um sabor de gratidão por ter convivido com ela todo o tempo que pude...
Um momento lindo este de sua vida ... uma catarse maravilhosa ... q bom q vc tem isto em sua história e em sua alma ... isto vai te acompanhar por toda a vida e será o seu farol ... adorei conhecer um pouco de sua vovó!
ResponderExcluirbjão querido e ao Laly tb ...
Pois é: "isto vai te acompanhar por toda a vida e será o seu farol"...
ExcluirBeijos pra vc e pro Elian!
fez bem em guardar as lembranças boas dela, não as ruins.
ResponderExcluirMas eu guardei as lembranças ruins. O que eu não quis guardar foi lembranças do corpo dela morto...
ExcluirBeijos!
Raphael...vc agora me deu coragem para uma sessão de meu blog que venho querendo fazer a um bom tempo. Gracias. Quanto à sua avó..ela deve ter sido adorável. Que bom que vc a conheceu e desfrutou de sua companhia. Vc está certo...lembre-se dela viva, pois ela é parte de voce, do que você se tornou. Abraços e beijão.... no Laly tb.... rsrsrr
ResponderExcluirSessão no seu blog?? Opa, quero acompanhar isso, com certeza!
ExcluirBeijos!
Não importa como, não importam os momentos ruins, nada importa. Você teve seu anjo e soube viver do lado dele. E anjos não morrem. Você prova isso ao nos contar um pouco de sua história.
ResponderExcluirAbração.
Obrigado, Lucas! Suas palavras foram tão doces que confortaram meu coração!
ExcluirUm beijo!
Também adorei, principalmente porque nunca tive uma vó ou um vô assim! Guarde essa lembrança sempre forte e viva no seu coração! São pessoas assim que seguem nos dando força pra todo o sempre, presentes fisicamente ou não!
ResponderExcluirObrigado, Edu! Pode deixar que eu guardo a lembrança, sim! Abraços!
ExcluirNooossa... tive que me segurar aqui! Minha avó, a pessoa que mais me entendeu na vida...
ResponderExcluirBeijos.
Pois é, Cesinha. Pura emoção isso aqui...
ExcluirBeijos!
Achei sua vó fascinante pelo relato.
ResponderExcluir"Minha vó, no entanto, me disse apenas que meu pai não gostava dele, mas que não era pra eu ficar triste com isso porque meu pai era meio bruto"
Eu imagino que sua vó tenha sido uma daquelas pessoas resolutas e até serenas mesmo nos momentos de crise.
Eu também gostava muito da minha vó e de conversar com ela.Mas quando soube que ela não ia durar muito não conseguíamos mais conversar por causa dos remédios que a deixavam sempre cansada e faziam ela tirar várias sonecas no dia.E apesar que cultivar memórias doces ficou um pouco daquele amargor de não ter perguntado tudo o que poderia ter perguntado, de saber detalhes de sua vida que eu ainda não conhecia,do que ela pensava e de histórias que só ela poderia contar.
Acabei de notar que escrevi "vó"...rs
ExcluirThiago, vc escreveu "vó" porque escreveu com carinho. E não foi muito diferente do que eu fiz...
ExcluirAbração!
Não me lembro de ter tentado fazer um texto similiar a este.
ResponderExcluirMais tenho certeza de que não conseguiria descrever minha relação com minha avó, tbm fui o neto mais velho, o mais querido, o mais ligado..
Assim como você já perdi ela.. e 2 pessoas sensitivas, ja me disseram, a a senhora de cabelos negros e ondulados que me acompanha, ainda me ama, muito.
nunca contei a minha mãe o que ouvi dessas pessoas, da descrição perfeita de minha avó.. e eu nunca duvidei ter sido ajudado por ela, em alguns momentos de minha vida...
Ola, Diego, eu também achei que não ia dar conta, mas... Consegui!
ExcluirE acho muito legal vc ter tanto carinho pela sua avó e a coisa ser recíproca...
Abraços!
Ai to com o olho cheio d'água.. rss
ResponderExcluirDeve ser pk sou apaixonado pela minha avó e sim.. Somos mega parceiros e por duas vezes eu tive a honra e o orgulho de poder salva-la levando pro hospital qdo tava passando mal... Foi apenas devolver para akela que me salva tanto e tantas vezes.... Esse texto me deu ainda mais vontade de curtir ela, vou aproveitar que to aki largar esse computador e ir jantar com ela agora mesmo..
Obrigado meu lindo!!
Beijos!!!
Ai, Gato! Aproveita a sua avó, vai!
ExcluirBeijão!
Sabe q eu não tenho nenhuma lembrança afetiva da minha Vó, a mãe da minha mãe? (Ela tá viva ainda).
ResponderExcluirNão tenho nada.
Nadinha.
Um bjo pra vc. =)
Nossa! Que forte isso, né??
ExcluirUm beijo! :)
As lembranças boas ficam pra sempre. É sempre bom dar valor às pessoas em vida.
ResponderExcluirEu sempre dou valor às pessoas em vida, meu caro! Pode ter certeza!
ExcluirBeijos!
Tenha certeza que a parte boa que vc carrega dentro de vc, aquela parte de sabedoria, ervas medicinais, de rezar de dia e de noite, a fé em algo que os olhos não veem, de beber água com açucar no lugar do leite( prova mais linda que alternativas inusitadas é criatividade emocional ), herdou dessa mulher " desconstruída" que ajudou vc a se construir!
ResponderExcluirTens razão, mestre das Cores da Crise de meia idade! Tirando a tal da fé e o rezar, o resto sempre segue comigo...
ExcluirBeijos!
lindo o que você escreveu. eu não tenho mais nenhum avô ou avó vivos e sinto saudades. gostava muito deles. minha maior ligação foi com a avó materna, com quem inclusive morei um tempo. guardo as lembranças de todos com carinho.
ResponderExcluirÉ muito bom isso, não é? Poder ter vivido uma boa relação com alguém que se gosta...
ExcluirAbraços!
Poutz... por uma série de fatores, ando em uma fase meio família e de revisitar alguns momentos... e é impossível não se deixar levar por um post tão bonito como esse.
ResponderExcluirAcredito que gostar de alguém, não é só achar aquela pessoa o máximo ou nunca discordar... é, como você, viver com essa pessoa... e descobrir as nuances e os detalhes que fazem aquela pessoa.
Que bom ver, que ela vive em ti... assim, como eu acredito, que em alguma outra dimensão ela ainda olha por ti.
Abração!
Latinha, meu querido!
ExcluirEu agradeço a oportunidade de ter convivido com minha avó. Ela fez minha vida mais leve...
Abração!
CC.... tudo bem? Saudades... apareça. Beijos em vocês.
ResponderExcluirTô bem e tô voltando...
ExcluirEngraçado, tudo isso parece muito distante pra mim, nunca tive uma relação próxima com nenhum dos meus avós de nenhum lado. Pra mim, eles meramente existem e nada mais...
ResponderExcluirBeijo doido!
É meio como eu me sinto em relação ao meu pai...
ExcluirBeijo, doido!
Nossa, que lindo! Adorei. E eu mesmo fiquei irado, não só com seu irmão, mas com seus pais. Que absurdo!!!
ResponderExcluirEu tenho ótimas lembranças da minha avó também, que paciência ela tinha, hahaha. Que delícia de texto.
Eu também estou irado até hoje...
ExcluirObrigado, lindão!